Do discurso violento ao terrorismo: um relato exclusivo de 2 meses dentro do acampamento de bolsonaristas golpistas em Brasília
Foto-Reprodução
O golpismo alimentado por discursos radicais, teorias conspiratórias e incitação à barbárie fez parte do cotidiano do acampamento erguido há dois meses por bolsonaristas extremistas em frente ao Quartel-General do Exército em Brasília.
Foi de lá que partiu boa parte dos radicais que, neste domingo (8), promoveram atos terroristas contra o Congresso Nacional, o Palácio do Planalto e o Supremo Tribunal Federal (STF).
A TV Globo registrou, em imagens exclusivas, o dia a dia do acampamento de bolsonaristas golpistas na capital (veja vídeos abaixo). Para garantir a segurança dos profissionais envolvidos na apuração, o material foi coletado para ser publicado depois da desmobilização do acampamento pela Polícia Militar do Distrito Federal e pelo Exército, ocorrida nesta segunda-feira (9).
Apoiadores golpistas de Jair Bolsonaro (PL), derrotado nas urnas em 30 de outubro, se instalaram ali logo após o segundo turno das eleições, vencidas por Luiz Inácio Lula da Silva (PT), a exemplo do que aconteceu em quartéis de diversas cidades pelo país.
Inconformados com o resultado, defenderam, desde o início, pautas antidemocráticas, com pedidos de intervenção militar e ode à violência. E, na primeira semana de janeiro, radicalizaram em declarações intimidadoras e com incentivo a ações violentas.
Ao longo desse período, participantes do acampamento:
- organizaram em um palco diversos “eventos” para arrecadação de dinheiro (em uma das ocasiões, foram coletados, em espécie, cerca de R$ 5 mil em 15 minutos) e espalharam cartazes com pedidos de PIX;
- exibiram faixas e cartazes com apelos em português (com recorrentes ameaças ao Estado democrático de Direito) e em inglês (muitos deles com traduções sem sentido);
- distribuíram água e comida de graça (com churrascos frequentes e fartos);
- fizeram um “gato” (crime de furto de energia elétrica) em um refletor na região, como mostra uma das imagens gravadas;
- marcharam repetidamente ao som da “Canção do Exército” e do “Hino Nacional” e puxaram gritos com palavras de ordem como “SOS, Forças Armadas”, além de rezas e orações;
- criaram uma tenda com um “confessionário” (um padre fazia visitas diárias);
- viram a concentração de pessoas chegar ao auge no feriado de 15 de novembro (muitos dos frequentadores vinham de outros estados e acompanhados de gente que eles tinham acabado de conhecer pelas redes sociais; eram aposentados ou trabalhadores do setor agropecuário liberados pelos patrões, mas havia também moradores de Brasília que permaneciam por algumas horas);
- apresentaram os primeiros indícios de debandada com o início da Copa do Mundo, em 20 de novembro, o que se intensificou progressivamente, até chegar a uma grande desmobilização no fim de dezembro;
- se envolveram, segundo autoridades, com a noite de vandalismo de 12 de dezembro e com a instalação de um explosivo encontrado perto do Aeroporto de Brasília na véspera de Natal;
- convidaram extremistas para a “posse” de Jair Bolsonaro em 1º de janeiro (uma impossibilidade constitucional e logística, dado que o ex-presidente tinha embarcado para a Flórida em 30 de dezembro);
- e escancaram, na primeira semana de 2023, o estímulo a ações truculentas e criminosas (em um áudio registrado em 5 de janeiro, uma mulher afirmou: “Se tiver que empurrar, empurra. Se tiver que dar tiro, dá tiro”).
A selvageria em Brasília foi precedida por uma concentração no acampamento, que desde sábado (7) recebeu mais de cem de ônibus, vindos de outros estados e trazendo cerca de 4 mil bolsonaristas radicais. Às 14h deste domingo, o grupo partiu em uma caminhada de 8 km em direção ao Congresso, com escolta da Polícia Militar do Distrito Federal.
Dias antes da invasão à cúpula dos três Poderes, extremistas se articularam por meio de aplicativos de mensagens. Nesta segunda, a PM do DF e o Exército realizaram uma operação que deteve 1,2 mil pessoas no acampamento. Elas foram levadas à Polícia Federal (PF).
Veja abaixo, em vídeos inéditos, o relato rotina do acampamento em Brasília:
No auge da concentração no acampamento em Brasília, em meados de novembro, havia arrecadação de dinheiro duas ou três vezes por semana. Lideranças que organizavam a vaquinha subiam em um palco no acampamento e, com um microfone, convocavam os demais participantes, que tiravam da carteira notas de R$ 50 ou de R$ 100. Em um desses eventos, chegou-se a juntar R$ 5 mil em cerca de 15 minutos.
De acordo com os acampados, a quantia arrecadada deveria ser usada para comprar água e comida, por exemplo.
Alguns deles chegaram a dizer que estavam se endividando para entregar dinheiro – e argumentavam que Bolsonaro receberia uma lista com o nome dos doadores e perdoaria eventuais dívidas que eles viessem a contrair.
Parte dos mantimentos também chegava via doação. E havia diversos cartazes com indicação de transferência via PIX.
A exemplo de outros acampamentos diante de quartéis espalhados pelo país, o da capital federal exibiu desde o começo faixas e cartazes com dizeres antidemocráticos e ataques ao processo eleitoral, ao STF, ao ministro Alexandre de Moraes e a Lula, por exemplo. Com pedidos de “Socorro, Forças Armadas”, as mensagens de teor golpista e ameaçador recorrentemente reivindicavam ações inconstitucionais e violentas.
No início da concentração, em novembro, os discursos eram um pouco menos exaltados, embora clamassem por intervenção militar e pedissem aos manifestantes que continuassem ali mobilizados por “72 horas”. Segundo essa “tese”, que se converteria numa espécie lema sempre renovável, Bolsonaro deveria guardar silêncio por três dias, até que pudesse adotar alguma medida capaz de reverter o resultado das urnas.
Em geral, os extremistas atribuíam a “esquerdistas infiltrados” algumas convocatórias para marchas em direção à Esplanada dos Ministérios, classificadas de “armação” e, àquela altura, sempre recusadas.
Também convocavam o auxílio de Augusto Heleno, que foi ministro do Gabinete de Segurança Institucional do governo Bolsonaro, e alegavam que Lula havia viajado para a Venezuela, tendo deixado um sósia no Brasil, ideia que acabou perdendo força depois da posse oficial do novo presidente, em 1º de janeiro
Com o passar do tempo, no entanto, as declarações se inflamaram e se radicalizaram ainda mais. Um áudio gravado em 5 de janeiro, por exemplo, mostra uma mulher afirmando: “Já era, agora é tudo ou nada. Se tiver que empurrar, empurra. Se tiver que dar tiro, dá tiro. Se tiver que meter a mão no pescoço… Não tem mais que ter dó”.
Neste domingo, extremistas que retornaram ao acampamento após os atos terroristas falavam em “tacar fogo” no STF. Nesta segunda, depois da operação de desmonte do acampamento, extremistas passaram a dizer que o Exército “se vendeu ao sistema”.
O acampamento tinha muitos geradores de energia elétrica, mas ocorreu no mínimo um caso de “gato”. O registro mostra fios ligados a um refletor nas imediações do acampamento para garantir o abastecimento clandestino em pelo menos duas barracas.
Comida e água eram servidas de graça no acampamento de Brasília. No auge da lotação, em meados de novembro, havia pelo menos quatro tendas de alimentação (onde se lia, em inglês, que as eleições foram fraudadas). Pela manhã, tinha misto-quente, frutas e café. No almoço, arroz, feijão, legumes, estrogonofe, macarrão, carne de panela, frango e muito churrasco.
Acampados viam chegar bois inteiros, assados em grandes estruturas e fatiados por diversos dos trabalhadores do agronegócio que apareciam por lá. Numa tenda mais “luxuosa”, o cardápio tinha picanha e outras carnes nobres (em uma ocasião, cordeiro), além de costela de porco e linguiça. Geralmente, quem servia a comida eram idosas que moravam em Brasília e se apresentavam para ajudar.
Os acampados dizem ser proibido o consumo de bebida alcoólica, mas houve situações em que os extremistas se reuniram para tomar cerveja. Também havia ambulantes espalhados pela praça, que deixaram de frequentar o local com passar do tempo. Vendiam comida, sorvete, bandeiras, roupas.
As marchas no acampamento eram praticamente diárias e ocorriam sobretudo ao som da “Canção do Exército” (“Nós somos da pátria a guarda / Fiéis soldados / Por ela amados…”) e do Hino Nacional. Diante de carros de som, bolsonaristas extremistas gritavam frases como “SOS, Forças Armadas” e “Forças Armadas, salvem a nação”.
Numa grande tenda, funcionava uma espécie de igreja do acampamento. Na parte externa da estrutura, foi colocada uma imensa imagem de um bebê, em campanha antiaborto. Numa tenda menor ali perto, uma folha de papel avisava: Confissão. Ali, os acampados recebiam atendimento de um padre que circulava diariamente pelo espaço.
Na semana passada, diante dos rumores de que haveria desocupação do acampamento, um morador de Santa Catarina que estava no acampamento em Brasília afirmou que estava com o aluguel atrasado.
“Se eles chegarem e tirarem o pessoal [do acampamento], legalmente eles têm que dar auxílio-aluguel pra gente. Eu não tenho pra onde ir. Hoje, faz três meses que eu não pago aluguel, então eu fui despejado em Florianópolis”, afirmou.
De acordo com ele, os acampados não poderiam ser tirados do acampamento, a menos que fossem levados a um abrigo, o que não era verdade.
No auge da mobilização, os bolsonaristas radicais do acampamento enfrentaram temporais que caíram em Brasília na época do feriado de 15 de novembro. Durante uma tempestade de raios no dia 11 daquele mês, frequentadores começaram a rezar e a orar. Quando se formou ao redor do Sol um anel colorido, como se fosse um arco-íris, num fenômeno conhecido como “halo solar”, muitos afirmaram: “Gente, é um sinal”.
As chuvas deixavam o acampamento com um aspecto de pós-carnaval de rua: água acumulada, cheiro fétido, lixo e mosquitos. Ainda assim, era grande a lotação.
Fonte:https://g1.globo.com