Violência no Castelão pode afetar saúde mental de crianças a longo prazo, alertam especialistas
Episódios de medo e mudanças no comportamento estão entre os possíveis efeitos nos pequenos que presenciaram confusão em jogo de futebol
Foto: Thiago Gadelha
Uma turma de crianças viu a empolgação de um jogo de futebol dar lugar a uma confusão generalizada na Arena Castelão durante o jogo entre Ceará e Cuiabá, pelo Campeonato Brasileiro, neste domingo (16), em Fortaleza. A experiência de violência pode afetar os pequenos, inclusive, a longo prazo, com episódios que impactam a saúde mental e também a vivência social.
Além do pavor do momento experimentado por quem esteve no estádio, os pequenos podem apresentar episódios de medo e mudanças no comportamento, como apontam especialistas em saúde mental.
Medo de voltar para o estádio ou mesmo ver jogos pela TV, querer dormir com os pais, urinar durante o sono e até apresentar comportamentos agressivos são possíveis efeitos para quem presenciou brigas entre torcedores, quebra de cadeiras e invasão do gramado.
“Algumas crianças vão lembrar do cenário no estádio e não vão mais querer participar daquilo, sentir medo, e até ao assistir um jogo podem se retrair”, resume Cecília Alves, psicóloga clínica.
A repercussão daquele momento, então, pode refletir por muito tempo nas crianças, conforme a idade e maturação da mente, como analisa a psicóloga Layza Castelo Branco, professora da Universidade Estadual do Ceará (Uece).
“A criança, mesmo protegida no colo dos pais, vai experimentar essa sensação compartilhada de pânico, desespero, medo. Pode ser que não registrem as cenas em si, mas ficam as sensações e sentimentos presenciados nesse momento, sem dúvidas”, frisa.Não dá para prever de uma maneira geral, mas a criança pode ficar com aversão àquela situação. Um exemplo típico é uma criança que vai fazer carinho num cachorro e ele avança. A criança cresce com aversão ao animalLAYZA CASTELO BRANCOPsicóloga
Em casos mais delicados, os pequenos podem precisar de atendimento de saúde mental, como acrescenta a especialista.
“Crianças que vivenciaram algo mais intenso, como a que ficou no colo do bombeiro, ou que atingida por alguma coisa, pode desenvolver transtorno de estresse pós traumático, que vai precisar de acompanhamento e acolhimento psicológico”, destaca.
Isso porque a violência não deveria fazer parte do cotidiano das crianças e pode gerar confusão na mente dos pequenos – ainda mais quando acontece num ambiente onde deveria ser de lazer.
“O papel dos pais é ajudar a criança a interpretar e absorver essa informação, explicando que não é assim que um espectador de futebol deveria se comportar e colocando que a violência não é aceitável em nenhum contexto”, frisa.
E como, na prática, isso deve ser feito? O primeiro passo é o acolhimento com frases como “você está com seus pais” e “estamos protegidos”. Os responsáveis por crianças também devem alertá-las que outras formas de violência podem, infelizmente, acontecer em outros contextos.
“Validar esses sentimentos: ‘o papai também ficou com medo naquela hora, mas agora estamos bem’. Então, tudo isso ajuda a criança a validar que foi aterrorizante, mas tem suporte para lidar com aquilo”, reforça.
Essa conversa é importante para a criança desenvolver a capacidade de analisar e compreender comportamentos disfuncionais.
“A criança não faz essa leitura externa, então pode querer voltar a dormir com os pais nos dias seguintes, ou dormir de luz acesa, voltar fazer xixi. Vai apresentar comportamento em que já tinha passado”, lista a especialista.
Além disso, há o risco de a criança associar a violência como uma resposta natural à frustração e, a partir daí, adotar comportamentos violentos.A criança se espelha no que vê, principalmente, nos adultos os parâmetros de convivência e de habilidades. Uma cena como essa gera um problema, porque a criança pode aprender que a violência é uma expressão de frustração aceitávelCECÍLIA ALVESPsicóloga clínica
COMO VOLTAR AO ESTÁDIO DEPOIS DISSO?
Quem vivenciou o momento de violência foi o torcedor Edilson Cavalcante, acompanhado da esposa e do filho Gabriel Dias, de 7 anos, que contou ao Diário do Nordeste, em reportagem escrita por Crisneive Silveira, a tensão com o pequeno.
“E o meu filho chorando, muito assustado. Ele se deitou no chão da arquibancada com a mãe dele, Aí ela baixou os assentos para o assento ficar por cima dele. E ele pedindo para sair dali, que nunca mais queria estar ali. A gente fica sem saber o que dizer para o filho”, contou.Como voltar ao estádio depois disso? O tempo cronológico é diferente do emocional e isso deve ser respeitado no processo até essas famílias voltarem aos estádios, como explica Cecília Alves.
“É importante entender que a criança, e até o adulto, ainda está vivendo aquele momento e sofrendo com aquilo. Então, é respeitar o tempo da criança, se o assunto ainda mexe com ela”, completa.
A especialista indica o uso da técnica chamada “dessensibilização” para, aos poucos, se aproximar do cenário que pode causar medo ou estresse.https://redcircle.com/embedded-player/sh/f3cb4034-7cd2-4350-911d-83234e471ab2/ep/14cb0e8b-2d99-4544-ab0f-10cbaf9c8007
Layza ressalta a importância do diálogo e lembrar que a competição pode ser saudável. O esporte e a torcida podem aproximar as pessoas e ser parte de uma experiência positiva, como reflete. Como melhorar a imagem do futebol depois do que aconteceu?
“Fazer um primeiro contato da criança que estava ou viu pela televisão, olhar o campo, descer, visitar o estádio. O próprio time do Ceará poderia criar um momento entre pais e filhos para fazer alguma brincadeira e trazer alguma memória positiva”, conclui.